Pacientes que tomam o produto apresentam melhoras significativas na redução de dor e convulsões, mas o estigma dificulta conversas sobre os benefícios do tratamento
Foto: Kid Júnior
Já se vão quase sete anos, desde 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a importação, “em caráter de excepcionalidade”, de remédios à base de canabidiol para tratamento de saúde, mediante prescrição médica. Porém, mesmo com o aval, famílias de pacientes e profissionais do Ceará ainda precisam lidar diariamente com o estigma do uso da planta em diversos setores da sociedade.
No rol das benfeitorias atribuídas à Cannabis medicinal, por especialistas e pacientes, estão a capacidade de inibir dores, reduzir incômodos e diminuir crises convulsivas. A lista de relatos dos efeitos relevantes é tão extensa quanto o percurso para assegurar que o uso medicinal da Cannabis seja aceito como um tratamento regulamentado e legal.
O Brasil viu o número de cadastrados para importação explodir em seis anos, segundo dados da Anvisa. Em 2015, foram concedidas 850 autorizações a pessoas físicas ou associações de defesa de pacientes. Em outubro de 2021, já eram 22.028, número quase 26 vezes maior. Não há dados detalhados por Estado.
A Anvisa condiciona a liberação dos produtos à concentração máxima de 0,2% de tetrahidrocanabinol (THC), principal elemento psicotrópico da Cannabis, e à predominância do canabidiol (CBD), este sim recomendado nas terapias. As exceções são para pacientes “sem outras alternativas terapêuticas ou em situações clínicas irreversíveis ou terminais”.
Porém, ainda que o uso e a venda estejam regulamentados, surge outro dilema: o financeiro. Os custos de importação podem se tornar altíssimos, e muitas famílias precisam recorrer ao Poder Público para ter acesso aos fármacos.
A reportagem questionou à Secretaria Estadual da Saúde do Ceará (Sesa) quantos pacientes são atendidos atualmente com o fornecimento de produtos à base de canabidiol, adquiridos em regime de dispensa de licitação, mas não obteve retorno.
Porém, o Diário do Nordeste teve acesso aos processos judiciais de sete dos pacientes com medicamentos garantidos pela Secretaria, conforme buscas no Diário Oficial do Estado (DOE) entre 2015 e 2021. A primeira compra autorizada pelo Estado ocorreu em abril de 2018.
R$ 847.197,91
foram pagos pelo Estado do Ceará em 16 processos de compra de medicamentos à base de canabidiol, entre 2018 e 2021, conforme os Diários Oficiais.
A idade dos pacientes contemplados varia de 4 a 26 anos. A maioria tem prescrição do canabidiol para tratar epilepsia de difícil controle, ou seja, quando os medicamentos comuns não são capazes de conter as convulsões.
As decisões judiciais mencionam que a falta do uso “traz como consequências o agravamento cognitivo pela incidência das crises” e “pode acarretar em severos prejuízos ao paciente demandante”.
CADA CONQUISTA É COMEMORADA
“É um mundo paralelo”, define uma das primeiras mães a lutar pelo direito do filho de receber o canabidiol no Ceará, cujo processo se iniciou em 2015. A pedido da família, eles não terão sua identidade divulgada.
Aos 4 meses de vida, o menino foi diagnosticado com uma malformação do córtex cerebral. A condição o fazia ter dezenas de crises convulsivas diárias que não respondiam à medicação convencional e angustiaram a família durante quatro anos.
O vislumbre de melhora veio em 2015, com a liberação de importação do canabidiol pela Anvisa. À época, a mãe já tinha acesso, por meio da Internet, a depoimentos de famílias estrangeiras que estavam obtendo sucesso no tratamento com o produto.
Porém, a esperança também esbarrou na falta de médicos com conhecimento e experiência para receitar o medicamento no Ceará. Foi preciso o encaminhamento do neurologista local para um profissional de São Paulo, cuja quantidade prescrita valeria por um ano.
“Eu não tive preconceito, até porque a medicação dele não tem o THC. Inclusive, a que ele toma hoje é pura. Só não queria que meu filho tivesse convulsão”, lembra.
Antes de recorrer à Justiça, a família “testou” o medicamento com verba própria, para avaliar se o menino teria reação positiva. Para a mãe, não há outro termo: “foi uma evolução”.
Nos primeiros meses, as crises diminuíram consideravelmente. A gente via que ele estava mais esperto, com cognição melhor, interagindo, e foi melhorando ao longo do tempo. Hoje, como já faz tempo que ele toma, não vemos tanta evolução como no começo. Por isso, já tentamos tirar medicação, diminuir o CBD. Foi um terror. As crises começaram de novo. Hoje, é um medicamento essencial para ele.
MÃE DE CRIANÇA TRATADA COM O CBD
O garoto não fala, mas se faz entender, garante a mãe. Atualmente, aos 11 anos, frequenta a escola e também ensaia os primeiros passos. “Toda pequena conquista é muito comemorada”, emociona-se a mãe.
Com o tempo, a luta dela passou a funcionar como tutorial para outras mães que a procuram para conhecer o caminho das pedras. Contudo, percebe, nem todas estão dispostas a enfrentar a morosidade do sistema de Justiça e recorrem a associações, como a Abrace, na Paraíba, para pelo menos adquirir o remédio a um preço menor.
Apesar dos avanços na discussão do uso do canabidiol, ela lamenta que ainda haja um longo processo para que outras pessoas, inclusive de dentro das próprias famílias, reconheçam-no como um tratamento farmacológico como outro qualquer.
“Tem gente que brinca: “ah, ele toma o da maconha”, “vai ficar viciado”. Eu respondo: “toma e fica muito bem”. Também conheço mulheres que o marido não queria que o filho tomasse, e elas precisavam dar escondidas. Quando eles comemoravam a melhora, elas contavam”.
MELHOR QUALIDADE DE VIDA
A família de Victoria Sophia, 12, por outro lado, nunca precisou esconder. A menina fortalezense foi uma das três beneficiadas com o recebimento do canabidiol pelo Estado a partir de cinco ações protocoladas pela Defensoria Pública do Ceará, entre 2018 e 2019.
Diagnosticada com epilepsia de difícil controle com um ano de idade, ela só obteve sucesso no controle da doença com o uso do canabidiol. Porém, o tratamento anual custaria cerca de R$ 25 mil, orçamento impossível para a família, o que a levou a recorrer à Justiça.
A ação da Defensoria foi instaurada em agosto de 2018. Em janeiro de 2019, os familiares receberam a remessa importada do óleo de cânhamo suficiente para um ano. Como o produto vem dos Estados Unidos e a cotação do dólar varia, o valor final foi de quase R$ 30 mil.
“A gente fez primeiro uma experiência e comprou com o maior sacrifício. Era pra comprar dez ampolas, só deu três”, lembra a avó, Ângela de Matos. “Hoje, se ela deixar de tomar, tem várias convulsões por dia, mais de dez. Com ele, dá só duas, três”.
Victoria faz uso de mais três medicações em associação com o canabidiol. Como o processo de aquisição é burocrático, a família sempre se antecipa ao fim da remessa atual para iniciar os trâmites da seguinte. Segundo Ângela, o objetivo é evitar perdas no aprendizado adquirido com tanto esforço.
Ela fica mais ativa e interage, apesar de não verbalizar. Na verdade, as únicas palavras que verbaliza são ‘vovó’ e ‘papai’. Ela conhece todo mundo ao redor, abraça, sabe o que é passear, comer, vai pra escola. Antes da pandemia, fazia natação e fisioterapia. Antes do CBD, a Victoria ficava retraída pelas convulsões, mais molinha, sem interagir; ele parece que dá um ‘up’.
ÂNGELA DE MATOS
Avó de Victoria
A mulher orgulha-se que o esforço da família, ainda que recente, tenha sido um dos pioneiros no Ceará a abrir caminhos para decisões favoráveis a outras crianças e jovens, tanto em relação ao preparo dos médicos quanto à sensibilização do Poder Judiciário.
“São crianças que requerem muito cuidado, determinação e luta para terem uma vida mais tranquila. A pandemia foi um momento horrível para eles porque precisam ser estimulados a não perder os vínculos. Eles são 100% estímulos: têm que conversar, brincar, para não esquecer. Eles têm limitação, mas também têm uma vida”, ensina.
A PRESCRIÇÃO NO DIA A DIA DE CONSULTÓRIO
Os benefícios da Cannabis no tratamento de sintomas físicos e mentais também são investigados na prática de profissionais do Ceará. A reportagem conversou com uma médica de Fortaleza e um médico de Sobral, cadastrados como prescritores em associações de Cannabis medicinal, que receitam o óleo do canabidiol há dois anos. A pedido deles, não terão seus nomes divulgados.
Embora reconheçam uma maior adesão de outros profissionais à terapêutica, os dois ainda percebem preconceito da categoria e temem represálias do Conselho Federal de Medicina (CFM). Eles acreditam que, mesmo com as concessões recentes, há reflexos da condenação histórica da maconha e seus derivados.
“Mas quando você não vê melhora com o arsenal que tem e é um médico ativo, vai atrás do que está acontecendo na Europa, na Rússia, na China. Você tem que se atualizar sempre na sua profissão porque a ciência é ativa, tem movimentos”, diz a médica.
Ela conta ter “bons resultados” para tratar autismo, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), Alzheimer e Parkinson, mas também indica o canabidiol para ansiedade, depressão, fibromialgia, artrite e artrose.
O médico de Sobral também acompanha crianças com autismo grave e adultos com discopatia lombar, fibromialgia e ansiedade, por exemplo. “Sempre começamos com a dosagem mínima, e tenho recebido poucos resultados negativos”, afirma.
Acredito que a Cannabis é a medicina do futuro, como a penicilina foi nos séculos 19 e 20, porque tem um sistema próprio de receptores no nosso organismo que serve para tratar uma série de patologias.
MÉDICO QUE PRESCREVE CANABIDIOL
A médica relata que há quem a procure na tentativa de “legalizar” o uso recreativo da maconha, sem saber que o canabidiol não age da mesma forma. “Quando perguntam se eu receito canabidiol, digo que faço consulta e vejo sua história de vida e sintomas. Se adequado, passo dentro de uma perspectiva de acompanhar os efeitos no organismo”.
Contudo, é categórica: o paciente não pode achar que o produto faz milagre. “Toda vida que aparece algo novo, as pessoas que sofrem correm em desespero, como se aquilo fosse a resolução de todas as suas dores, mas a cura vem através de uma avaliação médica bem pontuada, com exames e anamnese bem feita”, reconhece.
Para o médico, as discussões técnicas entre a classe médica e em termos legislativos, pela liberação do uso medicinal, devem ser qualificadas a partir dos depoimentos que os próprios pacientes dão sobre o processo de melhora.
Fonte: Diário do Nordeste